O Brasil ruma para um sistema partidário sólido, que fortalecerá ainda mais a nossa democracia. Isso é fruto da emenda constitucional nº 97, aprovada em 2017, e que estabeleceu a proibição da coligação nas eleições proporcionais e a cláusula de desempenho, como explicarei a seguir neste texto.
Nas últimas décadas, após a redemocratização, assistimos ao aumento desenfreado de siglas partidárias. De um quase bipartidarismo artificial do regime de exceção, chegamos atualmente a 33 legendas.
Esse número certamente é muito superior ao de diferentes ideologias políticas praticadas e que buscam apoio eleitoral. Ou seja: ou há mais de um partido defendendo a mesma ideologia ou há partidos sem ideologia clara, definida. Esse cenário deixa o eleitor inseguro para criar laços firmes com uma agremiação, com a ideologia com a qual tenha mais afinidades, em que possa militar, participar da vida partidária.
Um dos problemas causados por essa pulverização partidária é a busca por apoio no Legislativo, a chamada governabilidade. Em um cenário eleitoral com cerca de 30 partidos, em qualquer plano analisado (federal, estadual ou municipal), é muito difícil que um prefeito, governador ou presidente eleito possa contar, diretamente das urnas, com um cenário no Legislativo que permita a aprovação de projetos sem muita discussão e negociação com inúmeras legendas.
Isso vai obrigá-lo a manter entendimentos com legisladores que não estiveram em sua campanha, que não apoiaram seus projetos e propostas desde o início.
A negociação sempre vai passar uma percepção ruim para a sociedade. Parece que o governante (prefeito, governador ou presidente da República) eleito saiu em campo para “comprar” deputados ou vereadores para compor sua base de apoio.
Quando os representantes do Poder Legislativo aceitam conversar com algum prefeito, governador ou presidente de outro partido, também são vistos como se estivessem “à venda”. Em geral, não é o que acontece (embora, lamentavelmente, às vezes, seja).
Esse cenário começou a mudar nas eleições municipais de 2020. O pleito do ano passado não teve coligações nas eleições para vereador. Por causa disso, já se verificou uma redução significativa na quantidade de partidos com representantes nas Câmaras Municipais. Cerca de 70% dos municípios têm até 5 legendas nas casas legislativas, sendo que quase 30% ficaram com 3 partidos ou menos representados, ante menos de 5% nessa situação em 2016.
As coligações partidárias para eleger vereadores e deputados também levavam a estratégias eleitorais que pouco contribuíam para nossa democracia. Uma funcionava assim: um partido entregava seu tempo de televisão na eleição majoritária, condicionando coligação também nas eleições proporcionais (apresentando pouquíssimos candidatos para compor a chapa da coligação), além de exigir tempo de rádio e TV no horário gratuito e (grandes) recursos para esses poucos candidatos. Dessa forma, com poucos nomes bem votados e apoiados na votação de uma chapa com muitos outros nomes, partidos pequenos, ou até médios, garantiam sua presença na Câmara Federal, por exemplo, elegendo poucos e recorrentes líderes locais. Ocorria com frequência a situação de o eleitor votar num candidato do partido A, e ver seu voto ajudar a eleger candidatos do partido B, ou até C ou D, dependendo do tamanho da coligação.
Citei como exemplo a eleição para deputado federal pois é ela que define o “tamanho” do partido para a divisão dos fundos e do tempo de campanha eleitoral. Mas o cenário se repetia em eleições estaduais e municipais.
Com as regras antigas e esse roteiro, passamos ao longo dos anos a ter partidos preocupados apenas em ter bancadas. O objetivo era só influenciar governos e continuar contando com tempo de rádio e TV no horário eleitoral. Um círculo vicioso (e não virtuoso), em que o objetivo maior era alcançado ao conquistar a cadeira no Legislativo, e que se repetia a cada eleição, num looping infinito, degenerando a imagem do sistema e dos partidos perante a sociedade.
As duas alterações constitucionais da emenda nº 97 já estão contribuindo, e contribuirão ainda mais ao longo dos próximos anos, para melhorar a qualidade dos nossos partidos e do nosso sistema político-partidário.
A proibição da coligação nas eleições proporcionais, que, ressalto, já vigorou nas eleições municipais de 2020, provocou reclamação apenas daqueles que não querem fazer partidos, e sim cartórios para manter o controle de candidaturas e da influência que exercem, mesmo com apenas os poucos congressistas de sempre.
Não houve prejuízos para o eleitor e para os sistemas Legislativo e Executivo. Partidos agora precisam ter bases sólidas, vivas e valorizadas, para buscar nelas seus candidatos e a renovação permanente de quadros.
Sem coligações nas vagas proporcionais alguns esperavam uma explosão na quantidade de chapas. Mas em 2020 foi difícil termos municípios com muitas chapas completas. Isso é saudável. O cenário se repetirá também em 2022, nas chapas estaduais, com a continuidade da proibição das coligações para as eleições de deputados estaduais e federais.
Em cada Estado teremos inúmeros partidos que terão dificuldades para montar chapa completa. Os pré-candidatos que estiverem em partidos nessa situação vão, naturalmente, migrar para legendas que estiverem estruturando melhores chapas. Observaremos cada vez mais uma depuração qualitativa, tanto de partidos como de quadros partidários.
Em São Paulo, por exemplo, acredito que teremos de 10 a 15 partidos conseguindo estruturar chapas completas competitivas em 2022. Isso deve nos levar, por exemplo, nas eleições de deputado federal, a ter uma média de 6 eleitos por partido.
Nos Estados menores, muito provavelmente teremos menos chapas competitivas. Mas esses partidos se esforçarão para ter o maior número possível de candidatos. Pois é esse número de votos (entre eleitos e também não eleitos) que definirá a divisão dos fundos Partidário e Eleitoral para cada sigla. E, como já vimos nas eleições de 2020, a quantidade de partidos com eleitos tende a cair.
Cláusula de desempenho
Associada a essas mudanças temos a vigência da cláusula de desempenho, também chamada de cláusula de barreira.
Essa regra impedirá, em percentuais que sobem gradualmente a cada eleição até 2030, partidos que não atinjam uma proporção mínima de votos ou eleitos em diferentes Estados, de terem acesso aos fundos Eleitoral e Partidário e acesso ao tempo de programas eleitorais no rádio e na TV.
Em 2018, primeira eleição em que a cláusula de desempenho foi aplicada, só garantiram acesso àquelas prerrogativas os partidos que obtiveram, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 1,5% dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas; ou elegeram pelo menos 9 deputados federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação. Já nesta primeira fase, 14 partidos não atingiram o patamar mínimo.
Em 2022 serão necessários 2% dos votos ou 11 deputados federais eleitos, distribuídos da mesma forma por um terço dos Estados.
Em 2026 serão necessários 2,5% de votos em um terço dos Estados, com 1,5% dos votos válidos em cada um, ou 13 deputados de 9 Estados.
Em 2030, 3% dos votos válidos, com pelo menos 2% dos votos em um terço dos Estados ou 15 deputados federais de 9 Estados.
É importante ressaltar que a cláusula de desempenho não elimina partidos. Apenas exige, de maneira gradual (como explicado nos parágrafos anteriores), que as agremiações políticas tenham votações mínimas para desfrutarem do acesso ao dinheiro público –traduzido nos fundos e no tempo de rádio e de TV.
O Congresso foi generoso e fez um cronograma longo para implantar a nova regra aos poucos. Todos os partidos estão tendo tempo para se adaptarem.
Siglas que não cumprirem o que determina a cláusula continuarão a existir e a lançar candidatos em todas as eleições.
Os deputados e os vereadores que eventualmente forem eleitos por partidos que não atingirem a cláusula terão duas opções: 1) tomar posse e exercer seus mandatos por esses pequenos partidos ou 2) migrar para siglas mais estruturadas que tiverem cumprido a regra, sem que haja perda de mandato.
Aos partidos que, progressivamente, não atingirem os números suficientes, restarão na prática alternativas de se fundirem ou se integrarem em outras legendas. Daqueles 14 que não atingiram o mínimo em 2018, já há registro de que 5 se uniram.
Esse será um processo, em certa medida, de longo prazo –como é tradição na democracia. Mas foi a única maneira que o Congresso encontrou de iniciar essa relevante mudança. O importante é que o rumo não seja alterado para que possamos atingir a maturidade no campo partidário com o passar do tempo.
Para que cada eleitor possa, enfim, se identificar com a ideologia ou o programa de um determinado partido. Aí então poderemos ter implantada uma fidelidade partidária para valer. Cada candidato vai escolher o partido com o qual tenha, de fato, mais afinidade ideológica. O eleitor saberá em que ideias o candidato acredita, para cobrar dele no futuro. E a legenda poderá demandar dos eleitos conduta coerente com os princípios partidários. Evidentemente, deverá prevalecer o bom senso que leva os eleitos a ter discricionariedade em alguns temas.
Outra transformação importante foi a implantação do financiamento público aos partidos políticos. Não tenho como deixar de registrar o fracasso que foi o financiamento privado, de empresas. Levantavam-se dúvidas quanto aos interesses por trás de cada doação ou doador, que muitas vezes contribuía com campanhas rivais simultaneamente.
O modelo de doações de empresas privadas acabou rejeitado pela sociedade, pelos meios de comunicação e diversas outras instituições.
É fundamental que os recursos públicos destinados à manutenção das atividades partidárias e às campanhas eleitorais tenham sua utilização feita com transparência e cumprindo integralmente a legislação, dentro da discricionariedade que cabe, corretamente, aos partidos na priorização e destinação dessas verbas. Aqueles que errarem no seu uso (dentro das regras), evidentemente perderão espaço no cenário da política partidária. Partidos que privilegiarem candidaturas que não recebam o reconhecimento nas urnas irão, pouco a pouco, perdendo força.
Mais reformas
Acredito que, na medida que essas iniciativas citadas começarem a apresentar mais resultados, poderemos avançar em outras. A mais importante, no meu entendimento, é também estender a proibição de coligações às eleições majoritárias. Não tem sentido um partido existir para, sempre ou quase exclusivamente, apoiar candidatos de outro partido. É uma excrescência do sistema brasileiro.
Vale ainda ressaltar e aplaudir as saudáveis alterações afirmativas que obrigam os partidos a reservar um mínimo de 30% das vagas nas chapas proporcionais para as mulheres, além de lhes assegurar os recursos correspondentes ao percentual de sua participação. Trata-se de um processo que vem aumentando a presença de mulheres na política, e, talvez mais importante, crescendo a quantidade de candidaturas femininas qualificadas, com projetos densos, para buscar o reconhecimento do eleitorado.
É positiva também a mudança para assegurar recursos proporcionais aos candidatos negros (pretos e pardos) que participam das chapas, garantindo maior igualdade de condições na disputa entre as candidaturas. São formas de acelerar a real representação da sociedade na vida partidária, nas candidaturas eleitorais, e, finalmente, entre os eleitos.
Debates eleitorais
A regra atual para eleições de prefeitos, governadores e presidente da República obriga as emissoras de TV e de rádio a convidar todos os candidatos que concorrem a esses cargos quando organizam um debate. É louvável a intenção de dar espaço a todos. Mas esse é um caso em que certamente há um excesso em prejuízo do eleitor.
É conhecida a situação em que muitos candidatos só se inscrevem para concorrer a prefeito, governador ou presidente porque sabem que aparecerão nos debates de TV e de rádio. Os encontros acabam sendo ineficazes para que os principais candidatos realmente expliquem suas ideias.
Em 2020, importantes disputas municipais, como a da cidade de São Paulo, tiveram menos debates que o esperado no 1º turno por causa do excesso de candidatos que teriam de ser convidados. Os eleitores e a democracia perderam.
Creio que o Congresso deva analisar esse tema oportunamente. Há várias possibilidades para melhorar a regra. Uma delas é estabelecer que partidos que não cumpram a cláusula de desempenho não terão de ter seus candidatos a cargos majoritários obrigatoriamente convidados para debates.
Entendo que o ideal mesmo seria deixar os convites a critério do discernimento jornalístico de TVs e rádios, como nos Estados Unidos.
Hoje, a lei não impede que sejam feitos debates em vídeo apenas na internet com poucos candidatos. Não é necessário convidar a todos se a transmissão for só num canal do YouTube, por exemplo. Por que não aplicar essa regra também para as emissoras de radiodifusão?
Contas de campanha on-line
A transparência é a marca deste século 21. O Brasil aprovou sua Lei de Acesso à Informação em 2011, uma regra civilizatória e que ajudou a sociedade a ter mais uma ferramenta de controle.
Dentro do espírito da LAI, não faz sentido que as regras eleitorais não exijam de partidos e de candidatos a cargos públicos a divulgação de suas contas de campanha de maneira digital e em tempo real.
Hoje, as notas fiscais são digitais. Quase todos os pagamentos são realizados on-line. A chegada do Pix será uma revolução ainda maior. Nesse ambiente é estranho que os candidatos possam fazer prestações de contas apenas parciais antes da eleição.
Não faz sentido o eleitor ficar sabendo sobre quem são todos os doadores individuais privados de determinado candidato apenas depois da eleição.
Esse tema é delicado e não devemos avançar sem algo perto do consenso dentro do Congresso. Mas entendo que é algo a ser enfrentado.
O Brasil é um dos países com a mais desenvolvida tecnologia bancária do planeta. Creio que os sistemas político-partidário e eleitoral teriam muito a ganhar se fossem aperfeiçoados para que as contas de campanha (e as partidárias) fossem apresentadas com mais presteza, na forma digital. No caso das eleições, o ideal é que tudo seja em tempo real e antes de o eleitor ir às urnas. A maior vencedora seria a democracia, com mais transparência.
Estou confiante de que, com essas ações em curso e outros aperfeiçoamentos que virão, teremos a cada eleição partidos mais fortes, em quantidade suficiente para representar diferentes correntes político-ideológicas e programáticas. Isso vai motivar cada vez mais eleitores, de todos os gêneros, etnias e credos, a militarem na vida político-partidária.
Teremos mais diversidade, mais quantidade e certamente mais qualidade, com candidaturas propositivas, programáticas, que defendem interesses e projetos de diversos setores da sociedade.
Texto publicado no site Poder 360 em 15 de janeiro de 2021.